Retrospectiva do Papa Francisco: viagens, reformas e os desafios da Covid e da saúde

Vacina para o corpo, vacina para o coração

O ano que está chegando ao fim teve início com o Papa ainda “enjaulado” (emprestando a sua própria expressão) na Biblioteca Apostólica para o Angelus dominical e audiências gerais, a fim de evitar aglomerações e contágios. Do Palácio Apostólico do Vaticano, ao vivo para o mundo inteiro, enquanto o planeta iniciava 2021 com as feridas da pandemia, Francisco dizia:

“Este ano, enquanto esperamos um renascimento e novas curas, não negligenciemos a cura. Para além da vacina para o corpo, precisamos da vacina para o coração: é a cura. Será um bom ano se cuidarmos dos outros”…

Peregrino no Iraque

E a “cura” do Papa argentino tomou forma nas três viagens internacionais a lugares do mundo feridos pela guerra, pobreza e migração. Antes de tudo, e não apenas por ordem cronológica, a visita de 5-8 de março ao Iraque: “a” viagem do pontificado, a primeira de um Papa à dobradiça de um Oriente Médio devastado pela violência extremista e pelas profanações jihadistas. A decisão, anunciada em dezembro de 2020, foi definida como ousada e arriscada por muitos, devido ao risco de contágio, mas também por razões de segurança. No entanto, o Papa quis ir até ao fim e não deixar decepcionado o povo que, vinte anos antes, não pode abraçar João Paulo II. Entre as pessoas que o acolheram nos bairros poeirentos de Bagdá ou nas estradas de terra de Qaraqosh, Francisco fez-se presente como “peregrino”, encontrando-se também com o grande Ayatollah Ali al-Sistani, uma figura central do Islã xiita. E de Mosul, cenário de torturas e execuções no passado, o Papa elevou um grito aos céus contra todas as formas de violência levadas a cabo em nome de Deus.

Entre os pobres da Eslováquia e os migrantes de Lesbos

Grito que ressurgiu durante a sua viagem à Eslováquia (12-15 de setembro): no memorial Shoah, em Bratislava, Francisco falou de “blasfêmia” quando o nome de Deus é usado para destruir a dignidade humana ou quando, no gueto cigano de Luník IX, estigmatizou o racismo e a discriminação. Este grito tornou-se um apelo e depois uma condenação daquele “naufrágio da civilização” que assume a forma de arame farpado e contêineres sufocantes no verão e gelados no inverno, onde milhares de migrantes vivem em condições desumanas no Centro de Acolhimento e Identificação de Lesbos, visitado no final da viagem a Chipre e Grécia (2-6 de dezembro). Deste limbo às portas da Europa, depois de ter “olhado nos olhos” da carne ferida de homens, mulheres e crianças, a voz de Francisco ressoou vigorosamente:

“Não deixemos que o Mare nostrum se transforme num desolador mar mortuum “.

Reformas

Em giro pelo mundo, mas com os olhos postos nas reformas que tomarão forma na próxima constituição apostólica Praedicate Evangelium, Francisco publicou oito Motu Proprio de Janeiro a novembro para introduzir mudanças e inovações nas esferas pastoral, financeira e judiciária. O primeiro, Spiritus Domini (11 de janeiro), estabeleceu que os ministérios leigos do leitorado e acolitado podem ser confiados às mulheres. Depois veio o Motu proprio de 16 de fevereiro que atualizou o setor da justiça penal, seguido da Constituição Apostólica Pascite gregem Dei, assinada em 23 de maio, com a qual foi promulgado o novo Livro VI do Código de Direito Canônico, contendo regulamentos sobre sanções penais na Igreja. Em 24 de março, tendo em conta o défice que caracterizou a gestão econômica da Santa Sé durante anos e o agravamento causado pela pandemia, o Papa decidiu cortar os salários dos cardeais, superiores e religiosos. Na mesma linha, em 29 de abril, introduziu uma medida anti-corrupção, estipulando que os executivos teriam de assinar uma declaração afirmando que não tinham condenações ou investigações por terrorismo, lavagem de dinheiro ou evasão fiscal, e que não podiam ter bens em paraísos fiscais.

No dia seguinte, 30 de abril, foi decidido que o Tribunal de Primeira Instância do Vaticano seria também competente para os processos penais envolvendo cardeais e bispos. Ainda em 11 de maio, Francisco publicou Antiquum Ministerium para instituir o ministério do catequista. Em meados do verão europeu, em 16 de julho, a Traditionis Custodes foi promulgada para redefinir as modalidades de utilização do antigo Missal. O documento provocou reações geralmente positivas, mas também várias dubia que foram respondidas pelo Culto Divino em 18 de dezembro. Finalmente, o último Motu proprio foi emitido em 26 de novembro para criar uma Comissão Pontifícia de verificação e aplicação na Igreja italiana  do Mitis Iudex Dominus Iesus (em vigor há seis anos) sobre processos de nulidade matrimonial.

Processos no Tribunal vaticano

Sobre o tema dos processos, 2021 foi também o ano dos dois processos judiciais no Tribunal vaticano: o processo dos alegados abusos sexuais no Pré-seminário São Pio X, que teve início em 14 de outubro de 2020 e terminou em 6 de outubro de 2021, com a absolvição dos dois imputados, e depois o processo em curso por alegadas irregularidades financeiras com fundos da Secretaria de Estado. Iniciado em 27 de julho, o julgamento, agora na sua quinta audiência e ainda parado em escaramuças processuais, será retomado em 25 de janeiro.

A operação na Policlínica Gemelli

Na história do pontificado, o ano que está prestes a terminar será também recordado pelas notícias sobre a saúde do Papa. Começando pela ciática, depois a vacina Pfizer que à qual o Pontífice se submeteu a 13 de janeiro (com subsequentes vacinas de reforço) e finalmente a admissão na Policlínica Gemelli, em 4 de julho, para uma operação “programada” de estenose diverticular que o viu ficar no “Vaticano III” durante dez dias. Do décimo andar do hospital romano, o Papa apareceu também para a recitação do Angelus, com algumas crianças da ala de oncologia ao seu lado, invocando um bom serviço de saúde “acessível” a todos. A operação ofereceu o pretexto para alguma lucubração sobre a demissão do Santo Padre. Ele próprio respondeu numa longa entrevista com a estação de rádio espanhola Cope, afirmando que tal decisão nunca lhe tinha passado pela cabeça.

Um caminho sinodal sem precedentes

O ano 2021 foi também o ano em que Francisco introduziu uma das mais importantes novidades do ponto de vista eclesial: a abertura de um caminho sinodal de três anos, que começará “de baixo”, ou seja, a partir dos fiéis – e não só – de todas as partes do mundo e culminará em 2023 com uma grande assembleia no Vaticano. Há três fases para este novo itinerário anunciado em maio e aberto com uma missa em São Pedro em 10 de outubro: diocesana, continental e universal.

O Sínodo … não deve ser uma ‘convenção’, uma convenção eclesial, uma conferência de estudo ou um congresso político, … não deve ser um parlamento, mas um evento de graça, um processo de cura conduzido pelo Espírito.

Vacinas, clima, paz, pobres

Nos últimos doze meses, foram feitos inúmeros apelos, começando por aqueles em favor das vacinas anti-Covid. Por um lado, o apelo a uma distribuição justa e acesso rápido, especialmente nas partes mais pobres do mundo: “Que todos, sem exclusão, tenham a oportunidade de se protegerem através da vacinação”, disse o Papa ao presidir a oração do Terço pelo fim da pandemia nos Jardins do Vaticano no dia 31 de maio. Por outro lado, o encorajamento a não ceder ao ceticismo, às falsas notícias e ideologias e a se vacinar porque fazê-lo “é um ato de amor”. Uma posição reiterada pela Santa Sé, que em 22 de dezembro introduziu novas disposições para a entrada na Cidade do Vaticano.

Ao mesmo tempo, o apelo pela terra e a salvaguarda da casa comum. Um anseio sublimado na Laudato si’ e relançado na Fratelli tutti. Precisamente no dia do primeiro aniversário da encíclica, o Papa Francisco reuniu cientistas e líderes de diferentes religiões no Vaticano para um encontro em vista da Cop26 de Glasgow (à qual não pôde comparecer) que terminou com a assinatura de um documento conjunto apelando a zero emissões de carbono. Dois meses antes, em 7 de setembro, com o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, e o Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, o Papa tinha assinado um apelo sobre a urgência da sustentabilidade ambiental e a importância da cooperação global.

Com igual vigor, o Papa Francisco manteve alta a tensão sobre a questão da paz e do desarmamento. Não se pode esquecer as palavras que proferiu em 7 de outubro no Coliseu de Roma durante o encontro organizado por Sant’Egidio com representantes das várias religiões. O Bispo de Roma pediu para “desmilitarizar corações”, “depor armas”, “reduzir as despesas militares” e “converter instrumentos de morte em instrumentos de vida”, investindo na educação e na saúde.

Sem esquecer os pobres

Entre os muitos encontros – apesar da pandemia – com Chefes de Estado e de Governo (incluindo o Presidente estadunidense Joe Biden, o Presidente francês Emmanuel Macron, o Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e a última com o Presidente italiano que deixa o cargo Sergio Mattarella), líderes políticos ou da sociedade civil, Francisco não se esqueceu daqueles para quem escolheu o nome do Pobrezinho de Assis no Conclave que o elegeu em 2013: os pobres. Precisamente na cidade do Santo da Úmbria, no dia 12 de novembro, o Pontífice reuniu mais de 500 pessoas em situação de pobreza e de dificuldades provenientes da Itália e da Europa, na sua única visita à Itália, de forma privada.

Entre testemunhos comoventes, cânticos e orações na Basílica de Santa Maria dos Anjos, o Papa apontou o dedo contra as novas formas de pobreza, tais como mulheres tratadas como mercadoria de troca, crianças escravizadas, famintas e naufragadas, famílias que sofrem desigualdades sociais e desempregados, e apelou para que aos pobres sejam “devolvidos” à sua voz e dignidade. Pediu o cancelamento da dívida dos países pobres, a proibição das armas, o fim da agressão e das sanções, a liberalização das patentes para que todos tenham acesso às vacinas, e relançou duas propostas a serem implementadas imediatamente: um salário mínimo e uma redução da jornada de trabalho.

Um olhar sobre 2022

Dois eventos importantes estão previstos para o novo ano: em 27 de fevereiro, o encontro organizado pela Conferência Episcopal Italiana em Florença com os bispos e uma centena de prefeitos de cidades da orla do Mediterrâneo; em 22-26 de junho, o décimo Encontro Mundial das Famílias em Roma sobre o tema “O amor familiar: vocação e caminho de santidade”. Quanto às viagens internacionais, foi anunciada uma visita ao Canadá (as datas ainda não são oficiais), no contexto do processo de reconciliação entre o episcopado e os nativos, que ficaram chocados com a descoberta de valas comuns nas escolas residenciais confiadas pelo governo, no passado, a várias Igrejas cristãs, incluindo a Igreja Católica. Em entrevistas, o Papa Francisco manifestou também o desejo de visitar o Congo, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Hungria no futuro, sendo esta última uma etapa rápida em setembro na conclusão do Congresso Eucarístico Internacional em Budapeste.

Ainda o desejo de uma peregrinação ao Líbano, no auge de uma grave crise humanitária, política e econômica, um país pelo qual rezou com os chefes das Igrejas Orientais num dia de oração ecumênica em 1º de julho em São Pedro, tal como o desejo de viajar, juntamente com o Primaz Anglicano Welby, para o Sudão do Sul, onde nos últimos dias o Secretário para as Relações com os Estados, dom Paul Richard Gallagher, foi preparar o terreno para a chegada do Papa “provavelmente já no próximo ano”. No voo de regresso de Atenas, o Papa disse finalmente estar “sempre disposto a ir a Moscou” para se encontrar novamente, após o encontro de 2016 em Cuba, com o Patriarca de Moscou e de todas as Rússias, Kirill.

 

Fonte: Santa Sé

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